O domínio da linguagem construindo cérebros: o UP da inteligência

Este ano de 2025 chegou com grandes novidades para a comunidade de língua portuguesa, entre elas, a estreia de um filme totalmente produzido em língua portuguesa na indicação ao Oscar na categoria de “melhor filme”. A produção tem ainda outras duas indicações: Filme Internacional e Melhor Atriz (Fernanda Torres[1]). O filme, que tem como título “Ainda Estou Aqui”, foi dirigido por Walter Salles e se baseia em uma adaptação do livro de mesmo nome, escrito por Marcelo Rubens Paiva. Conta a história de uma família brasileira que teve o pai, o ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e assassinado pela ditadura militar brasileira. No longa, o público acompanha a transformação da esposa de Rubens Paiva – uma dona de casa dos anos 1970, mãe de cinco filhos – em uma das maiores ativistas dos Direitos Humanos do país.

[1] Fernanda Pinheiro Torres é uma atriz, escritora, cronista e roteirista brasileira. Filha dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres, reconhecida como uma das artistas mais influentes, versáteis e premiadas do Brasil.

O filme “Ainda Estou Aqui” é baseado em livro com o mesmo título, de Marcelo Rubens Paiva

 

[1] Dra. em Educação – Políticas Públicas – pela PUC/SP; Especialista em Neurociência aplicada a Educação pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP; Supervisora de Ensino do Estado de SP; Professora Universitária, Pesquisadora, Comentarista e Palestrante – Acesso www.robertabocchi.com.br          Insta: @robertabocchioficial

[1] Fernanda Pinheiro Torres é uma atriz, escritora, cronista e roteirista brasileira. Filha dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres, reconhecida como uma das artistas mais influentes, versáteis e premiadas do Brasil.

 

Até o momento, segundo dados publicados pela produtora Globoplay[1], o filme registrou US$ 981,8 mil nos cinemas dos Estados Unidos, Portugal e França somados. Somente nos EUA, o longa arrecadou US$ 132,6 mil em apenas cinco cinemas de Nova York e Los Angeles. Estes números contribuem para o posicionamento da língua portuguesa em um novo patamar, à medida que preconceitos linguísticos são gradativamente abandonados em nome da arte. A língua portuguesa passa a ocupar o palco principal e não apenas as letras miúdas de uma legenda quase invisível.

Para os brasileiros, contar a história da ditadura militar é sempre um ótimo momento de reflexão sobre os horrores do período e a necessidade de lutar para que a situação não volte a ocorrer. Os jovens, que não viveram o período da ditadura, podem conhecer melhor seus meandros, e os mais velhos, como eu, que de alguma forma viveram o período, podem repensar suas ações e revisitar memórias que sempre estarão guardadas, como um arquivo de sobrevivência.

Para a comunidade de língua portuguesa, mostrar ao mundo a beleza e a força da sua língua através da arte, vai além do orgulho do povo que a domina, funciona como um gatilho mental “up”, onde cérebros que antes se consideravam menos admiráveis e de certa forma acanhados quanto a sua forma de comunicação oral e escrita, passam a perceber a importância da sua linguagem frente ao mundo.

No geral, tanto a exaltação da língua portuguesa, como o tema central do filme “Ainda Estou Aqui”, provoca uma reflexão mental sobre o perigo da adoção de políticas governamentais radicais, de mão única, que não reconhecem a pluralidade de ideias e a possibilidade de uma convivência pacífica entre culturas diversas. O mundo parece não estar mais disposto a se utilizar de um único código para se comunicar, há espaço para o diferente.

 

Cérebros que se comunicam através da linguagem

 

A linguagem representa uma fonte de informação e expressão fundamental da espécie humana, foi responsável pelas primeiras organizações sociais na terra e garantiu a continuidade da vida enquanto produto e identidade de um povo. No princípio, no uso das ferramentas de caça com uma das mãos alternadamente, o homem primitivo foi desenvolvendo a especialização dos hemisférios cerebrais, que com o passar do tempo, abriu espaço e permitiu a aquisição da linguagem oral. Segundo registros históricos, cerca de 250 mil anos atrás o Homo Sapiens foi o responsável por desenvolver a fala.

Milhares de anos se passaram e o cérebro humano adquiriu a capacidade inata da oralidade, através de uma comunicação neural complexa, que envolve além de áreas do hemisfério cerebral esquerdo, como as conhecidas áreas de Broca e Wernicke[2], como também a audição e regiões do córtex cerebral.

Foi a partir da fala, se utilizando dos mecanismos cerebrais desenvolvidos para a oralidade, que o cérebro humano aprendeu a ler e a escrever. Porém, com a leitura e a escrita, também foi possível aprimorar a própria fala e organizar melhor os aspectos linguísticos de cada língua falada pelo mundo. Todo esse complexo sistema cerebral utilizado para a fala, leitura e escrita, impulsionou grandemente o desenvolvimento cerebral humano, ampliando as conexões neurais e acelerando a capacidade do próprio pensamento, que pode ser traduzido como “inteligência”.

Ocorre que, nem todos os povos desenvolveram a leitura e a escrita na mesma velocidade que a fala, fato que acabou de alguma maneira prejudicando o desenvolvimento cognitivo de determinadas comunidades espalhadas pelo mundo. Algumas pesquisas científicas recentes apontam que um dos maiores fatores de risco para o declínio cognitivo parece não ser a idade, e sim a falta de acesso à educação, logo, a ausência do pleno domínio da leitura e escrita em consonância com a fala.

[1] Disponível em: https://gshow.globo.com/globoplay/noticia/ainda-estou-aqui-ja-faturou-mais-de-r-5-milhoes-em-bilheterias-fora-do-brasil.ghtml – Acesso em 29/01/2025.

[2] As áreas de Broca e Wernicke são regiões do cérebro que desempenham um papel fundamental na linguagem. A área de Broca é responsável pela produção da fala, enquanto a área de Wernicke é responsável pela compreensão da linguagem.

 

O acesso adequado à linguagem como antídoto ao declínio cognitivo

 

Entre as diversas linguagens faladas pelo mundo, a língua portuguesa teve sua origem no latim, a língua nativa dos antigos romanos, e é considerada uma língua neolatina, com influências ainda das línguas árabes e das línguas locais das colônias. Segundo dados publicados pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a língua portuguesa é falada por mais de 265 milhões de pessoas em três continentes e a mais usada no Hemisfério Sul.

Como este texto faz referência a uma produção artística brasileira enquanto propulsora da língua portuguesa, tomamos como exemplo nas próximas linhas o Brasil, país de língua portuguesa, com um território de 8.510.417,822 km² e uma população de 203.080.756 habitantes.

Em pesquisa recente publicada na revista The Lancet[1], o Brasil aparece como um país onde a baixa escolarização ‘pesa mais’ do que fatores demográficos, como faixa etária ou sexo quando se trata do declínio cognitivo da população. Esta constatação preocupa ainda mais se considerarmos o declínio cognitivo como um dos fatores que compõem o quadro de demência.

 

[1] Acesso: https://www.thelancet.com/

 

Especificamente no Brasil, o maior fator de risco para alguém desenvolver declínio cognitivo — que faz parte do quadro de demência — não é a idade avançada, e sim a falta de acesso à educação. É o que afirma um estudo inédito feito por pesquisadores brasileiros e publicado nesta quarta-feira (29) na revista científica “The Lancet”, uma das principais do mundo. (FONTE: PORTAL G1 – 30/01/2025 05h02)[1]

 

A pesquisa analisou 41 mil pessoas residentes no Brasil, Colômbia, Equador, Chile e Uruguai. Nos países considerados mais pobres, de acordo com critérios do Banco Mundial, a desigualdade social e as dificuldades nos sistemas de educação e de saúde aumentam a possibilidade de alguém desenvolver demência. Já entre os mais ricos, fatores demográficos pesam mais.

O professor do Departamento de Ciências Morfológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutor Wyllians Borelli[1], um dos responsáveis pela pesquisa, afirma que “o estudo acaba comprovando que a educação, que é um fator social, tem um impacto maior no Brasil (no desenvolvimento da demência) do que idade ou sexo, diferentemente do que acontece na Europa e nos Estados Unidos”.

Diante dessa pesquisa desenvolvida pela UFRGS é possível estabelecer uma relação entre determinantes sociais como a leitura, escrita e fala, com o desenvolvimento cognitivo humano, sendo possível levantar a hipótese de que a deficiência destas variáveis sociais pode contribuir para o aparecimento de declínios cognitivos.

[1] Neurologista, doutor em Ciências Médicas. Professor do Departamento de Ciências Morfológicas e do PPG de Farmacologia e Terapêutica da UFRGS.

[1] Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/01/30/maior-fator-de-risco-para-demencia-no-brasil-nao-e-a-idade-e-sim-a-falta-de-acesso-a-educacao-afirma-estudo.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias – Acesso em: 05/02/2025.

 

Áreas cerebrais relacionadas a fala humana

 

 

A conclusão da pesquisa desenvolvida pelo grupo do Doutor Wyllians Borelli é fundamental para estimular políticas públicas e maiores investimentos nas áreas sociais, mas também contribui para entender melhor a importância da divulgação mundial de uma produção artística em língua portuguesa.

O filme “Ainda Estou Aqui” foi baseado em um livro, de mesmo nome, escrito pelo filho do deputado Rubens Paiva, o escritor brasileiro Marcelo Rubens Paiva. Segundo dados da empresa especializada em varejo online Neotrust Confi, no Brasil o livro “registrou um aumento de 9,2 vezes na média diária de vendas nos e-commerces após 6 de janeiro, um dia após a atriz Fernanda Torres vencer o Globo de Ouro pelo filme”. Só no estado de São Paulo, houve um crescimento de 49,4% nas vendas do livro, quando comparadas à média registrada em 2024.

É fácil concluir que o sucesso do filme produzido em língua portuguesa alavancou algo muito maior do que a economia do setor cultural, incentivou a leitura, a estimulação cerebral de um povo, e quem sabe, retardou possíveis declínios cognitivos de uma população que parecia não mais gostar da leitura de livros. Ao ler o livro, assistir ao filme e acompanhar o noticiário diário na expectativa de possíveis premiações, além do orgulho popular, há um exercício cerebral fundamental, fazendo funcionar regiões responsáveis pela leitura, escrita, audição, atenção, foco e pensamento crítico, em uma orquestra construtiva de inteligência, infelizmente algo cada vez mais raro atualmente.

 

Para terminar, não podia deixar de registrar minha percepção pessoal sobre o filme “Ainda Estou Aqui”. Assistir ao filme e ler o livro foi para mim um misto de deslumbramento pela belíssima obra e de retorno à consciência de acontecimentos que haviam ficado escondidos em minha memória. Senti claramente que um determinado futuro foi, de alguma forma, roubado de mim, aquilo que poderia ser, foi radicalmente desviado.

Lembrei-me do pai de dois amigos que foi morto pela ditadura; lembrei-me de não poder mais vê-los; lembrei-me de olhar com distância o caminhão de mudança, sem nem poder dizer adeus ou saber se podíamos um dia nos ver novamente; lembrei-me dos caminhões de policiais que comecei a ver pelas ruas do bairro da Penha[1], em São Paulo, onde vivia com meus pais; lembrei-me do meu próprio caminhão de mudança, indo para uma cidade do interior de São Paulo, longe de todos que eu conhecia; lembrei-me de ter viajado durante a mudança abraçada a uma televisão, o bem mais precioso que possuía, que de alguma forma me ligava ao mundo; lembrei-me de sentir medo; lembrei-me, lembrei-me, lembrei-me…

[1] O bairro da Penha na cidade de São Paulo – Brasil – está situado na Zona Leste do município e é uma das regiões mais antigas da cidade

Fotos pessoais

 

A ditadura militar brasileira silenciou vozes, destruiu sonhos e marcou uma geração com medo, revolta e dor. Alguns brasileiros que viviam distantes dos centros urbanos não percebiam muito bem o que acontecia, simplesmente viviam, com notícias aqui e ali, por vezes desencontradas e marcadas, já naquela época, por viés ideológico. Percebi claramente isso quando me mudei para o interior de São Paulo, pois enquanto o Brasil explodia na calada da noite por gritos sufocados pela repressão militar, pessoas conversavam sobre moda e concursos de beleza.

Essa bela e premiada produção artística brasileira vai além de uma homenagem à família do Deputado Rubens Paiva, presta um serviço ao Brasil e a seu povo, cravando com detalhes, beleza e competência, na memória não só dos brasileiros, mas de pessoas espalhadas por vários países, uma realidade que não deve ter mais espaço no nosso imaginário.

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