A neurociência nos auxiliando a entender currículos Escolares pensados sob a lógica de financiadores e Financiados

Introdução

Parece ser unanime o entendimento de que o Financiamento Público Educacional é essencial para a sobrevivência da Educação Pública Brasileira. Mas onde exatamente este financiamento pode representar ponto básico para uma aprendizagem de qualidade ou apenas uma forma de controle social, poucos se debruçam a identificar. Sabe-se que o repasse adequado das verbas públicas é importante para a manutenção das instalações físicas, para o pagamento dos salários, para aquisição de merenda ou para a compra de suprimentos escolares, todos requisitos importantes para a qualidade educacional, mas não se estabelece com frequência uma relação direta entre o uso dessas verbas e o processo de aprendizagem em sala de aula. Este artigo discute o financiamento público do Currículo escolar, especificamente o destinado à Educação Básica Pública, tomando como base os estudos desenvolvidos sobre Currículo, combinados com as últimas pesquisas da Neurociência aplicada à Educação, que permitem identificar como ocorre a aprendizagem dentro do Sistema Nervoso Central humano. Ao colocar lado a lado os conhecimentos acumulados ao longo do tempo pela Educação e os avanços na pesquisa sobre a cognição humana desenvolvidos pela Neurociência, este texto pretende alertar sobre uma possível influência biológica exercida pelo Currículo na formação de nossos alunos e alunas da Educação Básica e o quanto sua forma de financiamento pode se transformar em instrumento de poder e controle social.

1 Pesquisadora da PUC/SP – área Políticas Públicas e Reformas Educacionais e Curriculares;
Pesquisadora em Neurociência aplicada à Educação pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa
de São Paulo;
Supervisora de Ensino efetiva da Rede Pública Estadual de Educação do Estado de São Paulo.
Site: www.robertabocchi.com.br

O Currículo focado no cérebro humano

A Neurociência parece querer nos contar como ocorre a aprendizagem dentro do Sistema Nervoso Central humano e como podemos estimulá-la.

Trata-se de uma ciência nova, que ganhou força com as novas tecnologias de imagem cerebral, que permitem a visualização de atividade cognitiva no interior do encéfalo humano.

As mais recentes pesquisas da área demonstram que o conhecimento se dá através das conexões neurais, que ao acessarem os conhecimentos já armazenados no encéfalo, criam novas conexões, novas aprendizagens. É um processo individual, cada pessoa percebe a realidade e as informações de um jeito próprio, de acordo com a sua aprendizagem anterior, conforme as conexões neurais já realizadas por cada indivíduo.

O ato de aprender é entendido na Neurociência como um movimento em espiral, “[…] refere-se a uma mudança no comportamento que resulta da aquisição de conhecimento acerca do mundo, e a memória é o processo pelo qual esse conhecimento é codificado, armazenado e posteriormente evocado” (KANDEL, 2018, p.1256).

Quando o sujeito recebe uma informação nova, ela é comparada aos padrões encefálicos já existentes e se tiver significado, formará nova conexão neural, novas possibilidades de combinações desses padrões. É então armazenada na memória e pode ser acessada quando necessário.

Ao acessar essas memórias e combinar novamente, ampliamos o entendimento, ampliamos a aprendizagem de um padrão já existente.

Todas essas possibilidades cognitivas trazidas à tona pela Neurociência, se apresentam para a Educação no desenho curricular utilizado por cada Escola ou Sistema de Ensino, é no Currículo que se esculpe o sujeito que se quer formar e quais conexões neurais se pretende dar maior robustez.

Diante desse recorte curricular possível, torna-se urgente o abandono do senso comum formado pela ideia de que Currículo se resume ao material didático utilizado por uma Escola ou Rede de Ensino, é preciso reforçar um conceito mais amplo, que contemple além da seleção de conteúdos e material didático, a atitude diária de todos os profissionais envolvidos no ato de ensinar, as formações em serviço, o material de apoio ao docente, a gestão educacional, o trabalho com a comunidade escolar e por fim, uma dinâmica de sala de aula que entenda a Educação como um ato político.

David Hamilton (1992), ao escrever sobre a origem dos termos Classe e Currículo, conclui que este último veio contribuir para o controle externo educacional, estabelecendo conteúdos e métodos educacionais:

Primeiro veio a introdução de divisões em classe e a vigilância mais
estreita dos alunos; e, segundo, veio o refinamento do conteúdo e dos
métodos pedagógicos. O resultado líquido, entretanto, foi cumulativo:
o ensino e a aprendizagem tomaram-se, para o mal ou para o bem, mais
abertos ao escrutínio e ao controle externo. (HAMILTON, 1992, p. 43)

Para Apple (2006, p. 103), o Currículo é visto como mecanismo de controle social, não sendo neutro e nem aleatório, pois representa os interesses de um determinado grupo. É preciso entender esses interesses sociais para então compreender a seleção de seus conteúdos. O autor relaciona esses interesses com as estruturas econômicas e políticas que contribuem com a desigualdade social.

Outros autores ao longo da história conceituaram Currículo com significados diferentes. Considerando o cenário político atual e o objetivo deste texto, o conceito que mais se aproxima é o abordado por Apple (2006), colocando o Currículo como instrumento de poder econômico, social e político.

Nesse cenário, ganha importância a escolha de quais Competências e Habilidades devem estar presentes em um Currículo. Quem fará essas escolhas? Com qual objetivo?

O Ministério da Educação conceitua, em seus novos documentos curriculares, Competência como um conjunto de ações e operações mentais que o sujeito utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos, situações, fenômenos e pessoas que deseja conhecer. Para cada grupo de Competências há uma lista de Habilidades, que devem ser desenvolvidas para que o aluno alcance as Competências correspondentes ao grupo.

Um bom exemplo dessa dinâmica ocorre quando um sujeito aprende a escrever sem precisar mais parar para pensar em qual letra vem depois ou antes da outra, quando sua escrita já está automatizada, podendo ser exercitada com foco de atenção em outra ação, como por exemplo, escrever enquanto ouve alguém falar. Dizemos que esse sujeito é competente na escrita, que atingiu níveis de proficiência nessa ação, automatizou-a de forma que não precisa mais ficar pensando na ordem das letras, ele conquistou a Competência Escritora.

Para conseguir ser competente na escrita, esse sujeito teve que se tornar primeiro habilidoso na ação de escrever, teve que aprender e exercitar o movimento motor, depois se apropriar do espaço, da imagem, do tempo correto, dos significados, do desenho de cada letra e do treino de atenção e foco. Todas Habilidades necessárias para que um sujeito se torne competente na escrita, automatizado a ponto de escrever por longo tempo sem foco consciente em nenhuma das Habilidades apreendidas anteriormente.

Desenhando cérebros

Todo esse movimento de aquisição das Habilidades e Competências que envolve a escrita ou qualquer outra aprendizagem, obedece uma sequência biológica presente no Sistema Nervoso Central humano, que passa pelo córtex pré-frontal planejando a ação, seguido do córtex pré-motor elaborando uma sequência e por fim, o córtex-motor executando a ação. O cerebelo automatiza, corrige e organiza a execução dos movimentos, é o modo operante do circuito montado e treinado, é ele o responsável pelo que chamamos de “Competência”. Após se instalar no cerebelo como circuito correto e robusto, é reconhecido pelo cérebro como verdade absoluta, quanto mais for acessado mais robusto se torna. Um possível erro ou tendência equivocada nesse circuito, passa a ser imperceptível ao Sujeito.

Há um número enorme de Competências e Habilidades presentes na vida humana, mas é preciso recortá-las quando pensamos na estrutura de um Currículo. Reflexões sobre que sociedade se quer formar, qual sujeito se deseja para essa sociedade, qual o futuro econômico desejável, entre outras, devem pautar as discussões sobre um Currículo
baseado em Competências e Habilidades.

Infelizmente os Educadores nem sempre são ouvidos para a “edição” de um Currículo, quase sempre isso é realizado por Governos ou grandes Instituições Educacionais, que financiam e por isso, pensam o Currículo como um território de
“poder”, lançando mão de uma ideia de sociedade adequada para os Financiadores e não  para os Financiados.

 

Referências
APPLE, M. W. Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006.
HAMILTON, D. Sobre a origem dos termos classe e currículum. In: Revista Teoria e
Educação, nº 06, p.33 – 52. Porto Alegre, Pannonica, 1992.
KANDEL, E.R. Princípios de neurociência. Porto Alegre: AMGH, 2014.

 

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