Você sabe qual Educação Pública seu dinheiro está financiando? Que cérebros você quer para o futuro?
Há um ano atrás escrevi um artigo[1] que foi publicado nos Anais do XXIX Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação promovido pela ANPAE – Associação Nacional de Políticas e Administração da Educação – onde fiz uma provocação cognitiva sobre a importância de pensar o quanto a liderança política/educacional de um país pode influenciar e até ditar os rumos da Educação de uma Nação. Na época, pareceu uma utopia, mas um ano depois, parece ter se tornado realidade.
Sucessivos e desastrosos Ministros passaram pelo Ministério da Educação brasileiro nesse período e apesar dos movimentos desconectados, a intenção em implantar um currículo escolar baseado em ideologias pensadas exclusivamente pelo poder central, sem ouvir as reais necessidades da população brasileira, parece prevalecer e ganhar força.
Considerando os últimos acontecimentos nacionais na área educacional e a intenção curricular latente, resolvi republicar o artigo, na tentativa de chamar a atenção para o desenho cerebral que está tentando ser implantado nesse país com o seu, o meu e o nosso dinheiro, afinal somos nós que financiamos a Educação Pública Brasileira.
Parece ser unanime o entendimento de que o Financiamento Público Educacional é essencial para a sobrevivência da Educação Pública Brasileira. Mas onde exatamente este financiamento pode representar ponto básico para uma aprendizagem de qualidade ou apenas uma forma de controle social, poucos se debruçam a identificar.
Sabe-se que o repasse adequado das verbas públicas é importante para a manutenção das instalações físicas, para o pagamento dos salários, para aquisição de merenda ou para a compra de suprimentos escolares, todos requisitos importantes para a qualidade educacional, mas não se estabelece com frequência uma relação direta entre o uso dessas verbas e o processo de aprendizagem em sala de aula.
Este artigo discute o financiamento público do currículo escolar, especificamente o destinado à Educação Básica Pública, tomando como base os estudos desenvolvidos sobre currículo, combinados com as últimas pesquisas da Neurociência aplicada à Educação, que permitem identificar como ocorre a aprendizagem dentro do Sistema Nervoso Central humano.
Ao colocar lado a lado os conhecimentos acumulados ao longo do tempo pela Educação e os avanços na pesquisa sobre a cognição humana desenvolvidos pela Neurociência, este texto pretende alertar sobre uma possível influência biológica exercida pelo currículo na formação de nossos alunos e alunas da Educação Básica e o quanto sua forma de financiamento pode se transformar em instrumento de poder e controle social.
O Currículo focado no cérebro humano
A Neurociência parece querer nos contar como ocorre a aprendizagem dentro do Sistema Nervoso Central humano e como podemos estimulá-la.
Trata-se de uma ciência nova, que ganhou força com as novas tecnologias de imagem cerebral, que permitem a visualização de atividade cognitiva no interior do encéfalo humano.
As mais recentes pesquisas da área demonstram que o conhecimento se dá através das conexões neurais, que ao acessarem os conhecimentos já armazenados no encéfalo, criam novas conexões, novas aprendizagens. É um processo individual, cada pessoa percebe a realidade e as informações de um jeito próprio, de acordo com a sua aprendizagem anterior, conforme as conexões neurais já realizadas por cada indivíduo.
O ato de aprender é entendido na Neurociência como um movimento em espiral, “[…] refere-se a uma mudança no comportamento que resulta da aquisição de conhecimento acerca do mundo, e a memória é o processo pelo qual esse conhecimento é codificado, armazenado e posteriormente evocado” (KANDEL, 2018, p.1256).
Quando o sujeito recebe uma informação nova, ela é comparada aos padrões cerebrais já existentes e se tiver significado, formará nova conexão neural, novas possibilidades de combinações desses padrões. É então armazenada na memória e pode ser acessada quando necessário. Ao acessar essas memórias e combinar novamente, ampliamos o entendimento, ampliamos a aprendizagem de um padrão já existente.
Todas essas possibilidades cognitivas trazidas à tona pela Neurociência se apresentam para a Educação no desenho curricular utilizado por cada Escola ou Sistema de Ensino, é no currículo que se esculpe o sujeito que se quer formar e quais conexões neurais se pretende dar maior robustez.
Diante desse recorte curricular possível, torna-se urgente o abandono do senso comum formado pela ideia de que currículo se resume ao material didático utilizado por uma Escola ou Rede de Ensino, é preciso reforçar um conceito mais amplo, que contemple além da seleção de conteúdos e material didático, a atitude diária de todos os profissionais envolvidos no ato de ensinar, as formações em serviço, o material de apoio ao docente, a gestão educacional, o trabalho com a comunidade escolar e por fim, uma dinâmica de sala de aula que entenda a Educação como um ato político.
David Hamilton (1992), ao escrever sobre a origem dos termos Classe e Currículo, conclui que este último veio contribuir para o controle externo educacional, estabelecendo conteúdos e métodos educacionais:
Primeiro veio a introdução de divisões em classe e a vigilância mais estreita dos alunos; e, segundo, veio o refinamento do conteúdo e dos métodos pedagógicos. O resultado líquido, entretanto, foi cumulativo: o ensino e a aprendizagem tomaram-se, para o mal ou para o bem, mais abertos ao escrutínio e ao controle externo. (HAMILTON, 1992, p. 43)
Para Apple (2006, p. 103), o currículo é visto como mecanismo de controle social, não sendo neutro e nem aleatório, pois representa os interesses de um determinado grupo. É preciso entender esses interesses sociais para então compreender a seleção de seus conteúdos. O autor relaciona esses interesses com as estruturas econômicas e políticas que contribuem com a desigualdade social.
Outros autores ao longo da história conceituaram currículo com significados diferentes. Considerando o cenário político atual e o objetivo deste texto, o conceito que mais se aproxima é o abordado por Apple (2006), colocando o currículo como instrumento de poder econômico, social e político.
Nesse cenário, ganha importância a escolha de quais competências e habilidades devem estar presentes em um currículo. Quem fará essas escolhas? Com qual objetivo?
O Ministério da Educação conceitua, em seus novos documentos curriculares, competência como um conjunto de ações e operações mentais que o sujeito utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos, situações, fenômenos e pessoas que deseja conhecer. Para cada grupo de competências há uma lista de habilidades, que devem ser desenvolvidas para que o aluno alcance as competências correspondentes ao grupo.
Um bom exemplo dessa dinâmica ocorre quando um sujeito aprende a escrever sem precisar mais parar para pensar em qual letra vem depois ou antes da outra, quando sua escrita já está automatizada, podendo ser exercitada com foco de atenção em outra ação, como por exemplo, escrever enquanto ouve alguém falar. Dizemos que esse sujeito é competente na escrita, que atingiu níveis de proficiência nessa ação, automatizou-a de forma que não precisa mais ficar pensando na ordem das letras, ele conquistou a Competência Escritora.
Para conseguir ser competente na escrita, esse sujeito teve que se tornar primeiro habilidoso na ação de escrever, teve que aprender e exercitar o movimento motor, depois se apropriar do espaço, da imagem, do tempo correto, dos significados, do desenho de cada letra e do treino de atenção e foco. Todas habilidades necessárias para que um sujeito se torne competente na escrita, automatizado a ponto de escrever por longo tempo sem foco consciente em nenhuma das habilidades apreendidas anteriormente.
Desenhando cérebros
Todo esse movimento de aquisição das habilidades e competências que envolve a escrita ou qualquer outra aprendizagem, obedece uma sequência biológica presente no Sistema Nervoso Central humano, que passa pelo córtex pré-frontal planejando a ação, seguido do córtex pré-motor elaborando uma sequência e por fim, o córtex-motor executando a ação. O cerebelo automatiza, corrige e organiza a execução dos movimentos, é o modo operante do circuito montado e treinado, é ele o responsável pelo que chamamos de “Competência”. Após se instalar no cerebelo como circuito correto e robusto, é reconhecido pelo cérebro como verdade absoluta, quanto mais for acessado mais robusto se torna. Um possível erro ou tendência equivocada nesse circuito, pode passar a ser imperceptível ao Sujeito.
Há um número enorme de competências e habilidades presentes na vida humana, mas é preciso recortá-las quando pensamos na estrutura de um currículo. Reflexões sobre que sociedade se quer formar, qual sujeito se deseja para essa sociedade, qual o futuro econômico desejável, entre outras, deve pautar as discussões sobre um currículo baseado em competências e habilidades.
Infelizmente os Educadores nem sempre são ouvidos para a “edição” de um currículo, quase sempre isso é realizado por Governos ou grandes Instituições Educacionais, que financiam e por isso, pensam o currículo como um território de “poder”, lançando mão de uma ideia de sociedade adequada para alguns dos Financiadores e não para a maioria dos Financiados.
Momento delicado
Vivemos um momento pautado pela necessidade primordial de se manter vivo e enquanto isso, alguns se aproveitando da situação pandêmica, passam a boiada e aprovam projetos políticos polêmicos e desenham currículos que pretendem moldar cérebros pautados em ideologias específicas. É preciso atenção.
Há uma votação urgente que tramita no Congresso Nacional, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 15/15, que pretende tornar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb – instrumento permanente de financiamento da Educação Básica Pública.
Aprovar o Novo Fundeb deve ser um compromisso com o futuro de nossa Educação Pública. Garantir o financiamento dessa Educação é fundamental para a sua sobrevivência. “Mesmo considerando o cenário mais otimista – em que haveria redução de R$9 bilhões na disponibilidade de recursos para a Educação -, é bastante preocupante essa queda, uma vez que a área já é subfinanciada”. (BORGES J. M. – Diretor de estratégia política do Todos pela Educação).
Se não me falha a memória, não assisti nenhum dos últimos Ministros da Educação lutando pela aprovação do novo Fundeb. Será que não há interesse em financiamento público para a Educação ou será que estão mais ocupados com outros assuntos?
Além de financiá-lo precisamos participar do desenho curricular de nossos currículos escolares, do contrário, seremos controlados por cérebros moldados em doutrinas desconectadas de nossas realidades e por isso, cruéis com a maioria e longe de contribuir para o avanço social, econômico e humano de um país.
É urgente pensar e agir agora para termos cérebros com maior capacidade cognitiva, empática e humana assumindo o poder amanhã.
Existem várias maneiras de participar tanto do processo curricular educacional como do financiamento público da Educação brasileira, alguns canais como os citados abaixo disponibilizam espaços importantes de discussão, informação e registro de sugestões:
- MEC – Ministério da Educação (Brasil) – http://portal.mec.gov.br/;
- TODOS PELA EDUCAÇÃO – disponível em: https://www.todospelaeducacao.org.br/;
- FINEDUCA – Associação Nacional de Pesquisadores em Financiamento da Educação, – disponível em: https://fineduca.org.br/sobre/;
- ANPAE – Associação Nacional de Política e Administração da Educação– disponível em: https://anpae.org.br/website/sobre-a-anpae/identidade;
- INAC _ Instituto Não Aceito Corrupção – disponível em: https://naoaceitocorrupcao.org.br/;
- ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – disponível em: http://www.anped.org.br/sobre-anped;
- CÂMARA DOS DEPUTADOS – Palácio do Congresso Nacional – disponível em: https://www.camara.leg.br/papel-e-estrutura/;
- SENADO FEDERAL – disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/sobre-atividade.
Participe!
Referências
APPLE, M. W. Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006.
HAMILTON, D. Sobre a origem dos termos classe e currículum. In: Revista Teoria e Educação, nº 06, p.33 – 52. Porto Alegre, Pannonica, 1992.
KANDEL, E.R. Princípios de neurociência. Porto Alegre: AMGH, 2014.
[1] Disponível em: https://www.seminariosregionaisanpae.net.br/BibliotecaVirtual/5-Simposios/5VOLUME-Final.pdf
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Roberta Bocchi
Atualmente é pesquisadora e estudiosa da área de Neurociência aplicada à Educação pela Faculdade de Ciências Medicas da Santa Casa de São Paulo. Trabalha como Supervisora de Ensino efetiva da Rede de Educação Básica do Estado de São Paulo, onde também desenvolve pesquisas na área de Financiamento Público Educacional, Gestão Escolar e Currículo.
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