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Será que nosso cérebro tem alguma dificuldade em entender a dimensão do número de mortes diárias provocadas pela Covid-19 ou será que já estamos sob a ação de algum anestésico?
O cérebro humano constrói circuitos neurais para ações rotineiras, que são acionados automaticamente diante de atos diários da vida cotidiana, como escovar os dentes, se dirigir até o ambiente de trabalho ou ambiente escolar entre outras atividades que seguem um certo padrão comportamental. Mas as proporções de mortes diárias provocadas pela pandemia da Covid-19 vão além desse movimento cerebral humano.
Infelizmente há um ano convivemos com um boletim diário em números absolutos de mortes provocadas pela pandemia, porém, esse número é muito alto para os padrões mentais humanos relacionados a percepção da realidade, ele escapa da compreensão cerebral humana. No momento que escrevo este texto registramos no Brasil um acumulado de 328 mil mortes, com uma média diária de mais de 3 mil óbitos. São números difíceis de serem percebidos por áreas mentais específicas, como por exemplo, as responsáveis pela empatia. Nosso cérebro tem dificuldade de entender o todo humano que esses números representam.
A rotina de boletins numéricos diários é registrada pelo funcionamento cerebral, porém, há dificuldade em ser empático com a situação sanitária e conseguir entender a real dimensão da gravidade, visto que nos deparamos com números e não com todas as vítimas pessoalmente. Por essa razão, somente quando a doença ou a morte de alguém próximo de nós ocorre, começamos a enxergar a real proporção da pandemia
Esse fenômeno coletivo que atribui um aspecto de certa forma rotineiro a essa situação, pode ser explorado por várias áreas da ciência, visto enquanto fenômeno social, psicológico, filosófico ou de saúde pública. Nesse texto a opção foi abordá-lo enquanto fenômeno cerebral, embasado pelas pesquisas da neurociência.
A empatia pode curar o efeito anestésico
A empatia é um comportamento humano provocado em nível cerebral por elementos diversos. Enquanto conceito, evoluiu de apenas um estado para um processo, que demanda a existência e consciência do eu e do outro, envolvidos em uma relação de escuta, percepção, compreensão profunda, verdadeira e sem julgamentos.
Consiste na capacidade de se colocar no lugar do outro, de observar o mundo através dos olhos desse outro, procurando sentir a experiência subjetiva alheia vivenciada sem abrir mão da identidade daquele que observa. Porém, isso só ocorre se nosso cérebro reconhece que o outro faz parte de sua convivência humana.
Ocorre que esse “fazer parte” está cada vez mais prejudicado nesse momento, pois o número de vítimas é tão assustador e por isso atordoante para a percepção cerebral, que acaba bloqueando a possibilidade da empatia. Ela só se instala quando alguém vive o fenômeno ao seu lado, no seu campo pessoal de visão e percepção.
Há dois tipos de empatia, a cognitiva e a afetiva:
- Empatia cognitiva: há uma ativação maior de áreas e funções relacionadas ao córtex pré-frontal cerebral. Nesse caso, eu consigo entender a história do outro, simulo mentalmente o que está sendo relatado, consigo ajudá-lo lançando mão das funções mais racionais do cérebro. Há a construção de instrumentos para que o outro consiga atuar por ele mesmo no problema. Em situações onde a opinião do outro ou as escolhas do outro são muito diferentes da sua, é possível haver uma empatia cognitiva. Mesmo não compartilhando das mesmas preferencias ou ideais, é possível entender o outro e respeitá-lo;
- Empatia afetiva: há uma ativação das áreas e conexões cerebrais que associam as funções emocionais com as funções sociais, com peso maior para a vivência emocional trazida pela situação empática vivida. Há a construção de vínculos afetivos. Nessas ocasiões, frente a uma demanda emocional do outro, você não só entende a carga emocional vivida pelo outro como consegue se colocar no lugar do outro, através da sua afetividade. É possível até simular internamente o que a outra pessoa está sentindo naquele momento, e em casos extremos, tecer um paralelo entre a situação vivida pelo outro e alguma situação parecida já vivida por você, a ponto de se desequilibrar emocionalmente e não conseguir ajudar o outro.
Tanto a empatia cognitiva como a afetiva, tem como condição básica o estabelecimento de conexões mentais com o outro. Essa condição fica prejudicada quando temos mais de 3 mil pessoas por dia em situação de sofrimento e não conseguimos estabelecer vínculos afetivos ou cognitivos com cada uma delas, são apenas números.
Nessas condições o cérebro humano fica entorpecido. Há aqueles que tendem a procurar culpados e a encarar a situação como fracassos organizacionais, posições válidas e necessárias, mas há também aqueles que respondem com o que os psicólogos chamam de “ impotência adquirida”, delegando a culpa dos fatos a acontecimentos previstos por uma entidade divina, fato que em nada contribui para a manifestação da empatia ou para ações efetivas de controle sanitário.
O papel dos líderes políticos e dos símbolos
O funcionamento cerebral pode ser influenciado por narrativas de líderes políticos e pelos símbolos existentes, tanto na própria narrativa como no meio onde está inserido.
A percepção humana da realidade é única a cada indivíduo, depende da história de vida de cada um, das memórias construídas através da interação com o meio, da genética e da sensibilidade, que em certas ocasiões se mostra falha, não sendo capaz de dar conta do todo, enquanto fenômeno amplo e complexo da vida humana na terra.
Para que nosso cérebro consiga entender a relação de empatia necessária e possível ao momento, os acontecimentos precisam adquirir uma narrativa simbólica para a memória, construindo algum sentido pessoal que possa afetar de alguma forma a sensibilidade coletiva. Por essa razão, as lideranças políticas, os diversos meios de comunicação e as organizações não governamentais ocupam função primordial nesse processo de conscientização humana.
A prioridade é a articulação entre os poderes, seguida da cooperação entre as nações. A vida humana não pode mais ser apenas um número frio, a hora é agora, não pode ser amanhã, as falas de lideranças e o apelo humano na construção de elos entre a realidade e a percepção mental é urgente, para ontem.
Enquanto as narrativas políticas se mostram falhas e a pandemia parece se aproveitar disso, devemos mais do que nunca nos cuidar e para isso, se puder, fique em casa, use máscara, mantenha o distanciamento social e espere sua vez na fila da vacina.
São ações efetivas que podem salvar a sua vida.
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Roberta Bocchi
Atualmente é pesquisadora e estudiosa da área de Neurociência aplicada à Educação pela Faculdade de Ciências Medicas da Santa Casa de São Paulo. Trabalha como Supervisora de Ensino efetiva da Rede de Educação Básica do Estado de São Paulo, onde também desenvolve pesquisas na área de Financiamento Público Educacional, Gestão Escolar e Currículo.
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