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Você já imaginou não encontrar mais médicos, educadores ou policiais extremamente competentes no que fazem para lhe atender?

Pois isso já está acontecendo. Mês a mês, por conta do desmonte em todo o território nacional, esses profissionais que dedicaram anos de estudo, pesquisa e expertise ao serviço público, estão abandonando seus cargos e se dirigindo às diversas áreas privadas, dentro e fora do país. Isso não é privatização, isso é desmonte dos serviços essenciais nacionais e você, junto com toda a sociedade brasileira, é quem mais perde com esse movimento.

Antes de continuar, para que não haja dúvida, torna-se importante conceituar Estado, entendendo-o enquanto organização política, definida por Bobbio (1987, p. 94)[1] como “um ordenamento jurídico destinado a exercer o poder soberano sobre um dado território, ao qual estão necessariamente subordinados os sujeitos a ele pertencentes”. Dito isso, é fundamental levantar alguns pontos para reflexão.

Ponto de provocação

O financiamento público voltado para as áreas da educação, saúde e segurança, ano a ano diminui. Pesquisas de grande relevância social, se não foram interrompidas, estão no caminho; professores que deveriam contribuir para a formação dos múltiplos profissionais brasileiros estão sem condições de trabalho, com o protagonismo acadêmico esvaziado e condição financeira deteriorada; os policiais, que encaram diariamente o perigo urbano de peito aberto, estão cansados, morrendo, indo embora ou se curvando aos estímulos financeiros privados; insumos básicos para a manutenção dos serviços prestados estão escassos e de má qualidade. Até quando haverá resistência?

Percebe-se que essas áreas consideradas essenciais, entregues cada vez mais aos seus meandros burocráticos, alinhavados a uma legislação que prioriza apenas os aspectos técnicos, expulsa seus melhores cérebros e passa a cultivar naqueles que permanecem, o fenômeno da alienação, identificada por Silva (1996) como “alijamento do ser humano do processo de trabalho e a instalação em seu lugar do funcionário que exerce um cargo e que executa um papel” (SILVA, 1996, p. 30)[2]. Papel exercido sem envolvimento humano com a razão da profissão, apenas voltado ao cumprimento de deveres pré-determinados pelo poder governamental.

A visão de um funcionário que apenas cumpre deveres, afugenta os profissionais da área pública comprometidos com a excelência de suas atividades, que enxergam uma ausência galopante de seu protagonismo cognitivo. Cada vez mais as diversas Políticas de Governo se sobrepõem às Políticas de Estado. Enquanto uma Política de Estado deve refletir os interesses mais permanentes e consolidados do Estado brasileiro, a Política de Governo reflete apenas as “prioridades, o estilo, a ênfase e o tom definidos por forças responsáveis pela direção do poder executivo nacional durante diferentes períodos”. (FERNANDES, 2004, p. 88)[3]

Dessa forma, ora os funcionários públicos seguem uma diretriz governamental, ora seguem outra, como ondas que levam com elas a esperança daqueles que se tornaram apenas tarefeiros, cumpridores de determinações oficiais, que não se enxergam no processo e nem mesmo conseguem perceber para onde estão indo, apenas vão.

A desculpa da ECONOMIA

Para os que estão intrigados com a argumentação até aqui exposta, convido ao exercício lógico. Uma grande parcela brasileira paga duas vezes por segurança, educação e saúde, paga com seus impostos o serviço público e com seu rendimento mensal o serviço privado. Se cada pessoa que se encontra nessa situação hoje, pagasse ao Estado brasileiro apenas 10% do total que gasta com as três áreas de forma privada, poderia impulsionar a área pública, fazer uma imensa economia mensal e ter um serviço público competente presente.  Você já imaginou economizar 90% de seu gasto mensal?

Não estou aqui propondo um novo imposto ou algo parecido, estou apenas provocando uma amplitude de pensamentos sobre a questão e lembrando o quanto gastamos mensalmente com serviços que poderíamos ter gratuitamente com qualidade.

Há ainda uma parcela da população que privada de seus direitos fundamentais, se posiciona a margem da sociedade, com direito ao serviço público “que tem”, sem ter voz para questioná-lo ou mudá-lo, se embrutecendo aos poucos e cultivando revoltas, por vezes contra a parcela da população que de alguma forma consegue sobreviver, criando um ciclo de violência perigoso e fatal para toda a sociedade. Todos perdem.

A esfera pública, desmontada aos poucos, recebe a cada dia mais funcionários fruto de uma formação deficitária, apresentando pouco ou nenhum protagonismo. São profissionais que, diante de uma sociedade cada dia mais competitiva, enxergam no serviço público apenas a possibilidade de estabilidade financeira, que mesmo sendo pequena, representa uma possibilidade de sobrevivência diante do caos social em que vivem.

Você deve estar se perguntando se o problema central é apenas uma questão financeira ou ideológica e eu respondo que não. Há um segundo fantasma que destrói as funções públicas do mundo todo; a corrupção.

O fantasma da corrupção

Edwin Sutherland (1883-1950)[4] por volta de 1930, desenvolveu uma pesquisa que tentava explicar os motivos que levavam as pessoas a se envolverem com o crime. A teoria desenvolvida por Sutherland (1939) baseava-se na ideia de que uma certa desorganização social gerava o comportamento criminal.

A função social do crime é de mostrar as fraquezas da desorganização social. Ao mesmo tempo que a dor revela que o corpo vai mal, o crime revela um vício da estrutura social, sobretudo quando ele tende a predominar. O crime é um sintoma da desorganização social e pode sem dúvida ser reduzido em proporções consideráveis, simplesmente por uma reforma da estrutura social (SUTHERLAND, 1939).

As ideias apresentadas por Sutherland (1939) a respeito do crime enquanto fator social, representa ponto de partida importante para o estudo da corrupção, pois segundo o Código Penal Brasileiro, corrupção é crime e como tal, deve ser combatido por toda a sociedade.  É definido como a utilização do poder ou autoridade para obter vantagens e fazer uso do dinheiro público para o seu próprio interesse ou de alguém próximo.

No ano de 2019 publiquei um livro intitulado “Há corrupção na Educação? Relatos daqueles que vivem essa realidade no chão da escola pública brasileira”[5], resultado de minha pesquisa de doutorado sobre o mesmo tema desenvolvida na PUC/SP durante quatro anos. Há época, constatei que havia uma cultura estabelecida de apropriação privada dos recursos públicos arraigada no Brasil. Salientei que a invisibilidade dessa rede de corrupção se instalava e se fortalecia na atitude de consentimento dos envolvidos, mesmo não concordando inteiramente. Faziam-se de cegos, suspeitavam ou até mesmo presenciavam, mas com a cultura do abafa, deixavam-se vencer. Quem via não denunciava; quem ouvia, fazia-se de surdo; quem falava, desmentia depois. O medo mesclava-se à covardia e vencia o mais forte.

Passados dois anos da publicação do livro pouca coisa mudou no cenário brasileiro, a corrupção continua presente, os envolvidos parecem continuar consentindo mesmo parecendo não concordar. O medo continua a se misturar com a covardia e a lei do mais forte continua a prevalecer.

Enquanto houver áreas públicas como a educação, saúde e segurança fragilizadas, uma cultura transgressora sem punição, a ausência de transparência dos gastos públicos e o descumprimento das leis, haverá uma cultura da corrupção sendo ampliada e se instalando em cérebros cada vez mais fragilizados e fracos cognitivamente.

É preciso urgentemente derrubar essa cultura instituída, lutar pela ética financeira, enfrentar esses abismos sem se deixar cair. Maior financiamento para as áreas essenciais do serviço público, menos corrupção e respeito aos cérebros dos profissionais brasileiros é sem dúvida uma via de sucesso social, onde TODOS ganham.

[1] BOBBIO, N. Estado governo sociedade – Para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

[2] SILVA, J.M. A autonomia da escola pública. Campinas, São Paulo: Papirus, 1996.

[3] FERNANDES, L. Fundamentos y desafios de la política exterior del gobierno Lula. In: Revista CIDOB d`AfersInternacionals, Barcelona – España, nº 65 p. 87-94, 2004.

[4] SUTHERLAND, E. H. Principles of criminology. Chicago: J. B. Lippincott, 1939.

[5] BOCCHI, R.M.B. Há corrupção na Educação? Relatos daqueles que vivem essa realidade no chão da escola pública brasileira. São Paulo: Appris, 2019.