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Será que a humanidade realmente evoluiu ou apenas está mergulhada em delírios cada vez mais tecnológicos?
É fato que no âmbito técnico e se considerarmos a história mais recente, no âmbito da tecnologia da informação, a humanidade adquiriu grande conhecimento e de certa forma evoluiu. Não dependemos apenas dos cavalos e bois para nossa locomoção, podemos utilizar um grande número de medicamentos para o tratamento de males que antes eram fatais, nos comunicamos em tempo real com pessoas do outro lado do mundo, temos uma variedade de alimentos que antes não existiam, entre outras possibilidades que estão ao dispor de alguns, não de todos. Mas e se tudo isso acabasse de um dia para o outro, será que correríamos o risco, enquanto humanidade, de voltarmos há um tempo onde as pessoas se matavam por qualquer motivo, as mulheres morriam de parto e a lei seria apenas a do mais forte fisicamente?
A Professora Dra. Branca Ponce ao escrever sobre essa questão[1] afirma que “quanto mais carências têm os indivíduos, mais eles se embrutecem. No limite, quando lhes falta o essencial, a sua humanidade corre o risco de regredir ao puro estado de animalidade. O seu grau de consciência e liberdade é, portanto, diretamente proporcional ao seu bem-estar material, físico, cultural, emocional e espiritual”. (PONCE, 2002, p.18)
A afirmação de Ponce (2002) nos faz pensar que na ausência dos avanços técnicos e tecnológicos conquistados pela humanidade corremos o risco de retração evolutiva, podendo até atingir níveis próximos ao “estado de animalidade”. A autora chama atenção ainda para a importância dos aspectos materiais, físicos, culturais, emocionais e espirituais presentes na sociedade como propulsores da evolução humana.
Dito isso é preciso questionar se a evolução ocorreu em nós ou no mundo onde nós vivemos? Há indicativo que a sociedade viveu um processo gradativo de adaptação ao meio, com maior ou menor adesão, marcada pelas condições de acesso individual ou coletivo. É possível concluir que o processo evolutivo humano é cíclico; o mundo mudou o homem que mudado momentaneamente, mudou seu mundo. E no cerne dessa mudança está o comandante da vida humana na terra: o cérebro humano.
Ele, o cérebro, se adaptou ás novas técnicas de agricultura, às novas opções de locomoção, ao acesso cultural, à tecnologia da informação, ao mundo industrial, ao mundo do capital e ao poder que tudo isso lhe proporcionou. Passou a ser estimulado diariamente por ricas e diversificadas fontes de informações, que de certa forma alimentaram sua necessidade primária de estabelecer relações mentais entre tudo o tempo todo.
Mas até que ponto as relações que estabelecemos entre tudo que vivemos são reais ou são apenas fruto de nossas analogias cerebrais sedentas por relacionar fatos e percepções diversas em busca de sentido?
O cérebro interpretando o mundo
O cérebro humano é formado por uma massa encefálica composta, entre outras substâncias, de células nervosas que se conectam o tempo todo, de acordo com os estímulos internos e externos. Cada vez que um estímulo chega ao sistema nervoso central humano tem início uma procura imediata de informações apreendidas anteriormente que possam se relacionar com a informação nova e dar um sentido ao novo conhecimento, formando um conectoma, um circuito novo ou ampliado por informações recentes. Há uma necessidade cerebral constante em estabelecer relações com o que vemos, ouvimos, lemos, observamos ou simplesmente vivenciamos, na tentativa de identificar se a aprendizagem nova poderá ser útil ou não para a sobrevivência na terra. É preciso ter algum sentido.
É nesse momento que tem início aquela vontade por vezes incontrolável de ter que entender e interpretar tudo, como se o mundo fosse auto explicável e bastasse um pouco de observação para logo ter em mente uma nova teoria da conspiração, ou uma receita infalível para a cura de algo grandioso, ou ainda a chave da felicidade. E por aí vai um cérebro alucinado tentando estabelecer relação de tudo com tudo. Um verdadeiro delírio, que por vezes pode ocorrer de forma coletiva, se tiver como líder um alucinado mental.
Ocorre que nem sempre nossa sensibilidade aliada a percepção é capaz de captar todos os estímulos externos pertinentes a um determinado fenômeno, acabamos por captar os que se mostram mais relevantes individualmente e isso nos atribui uma percepção falha da realidade. Cada indivíduo tem a sua percepção do fenômeno, mesmo que uma multidão veja o mesmo acontecimento ele será registrado pelo cérebro de cada um de acordo com suas memórias, vivências anteriores e histórico de vida. Cada um tem um conectoma único, fruto da sua percepção de mundo também única.
Então como saber se uma pessoa realmente adquiriu um conhecimento novo de algo ou se apenas está sofrendo um delírio cognitivo?
O delírio cognitivo
Vivemos em sociedade, vivenciamos estímulos diversos de forma coletiva e individual e sempre temos a possibilidade de conversar com pessoas diferentes de nós sobre o ocorrido, ler a respeito, pesquisar, procurar informações de fontes confiáveis e confrontar nossos pensamentos provisórios a respeito daquele fenômeno. Mas talvez o mais importante seja procurar o conhecimento científico acumulado sobre o fenômeno observado, pois ele foi testado, pesquisado e confrontado por muitos e pelo tempo. Somente após esse exercício cognitivo será possível perceber se o entendimento pode ser considerado novo conhecimento a respeito de algo ou se apenas trata-se de um delírio cerebral.
A história registrou vários momentos de delírios coletivos que acabaram modificando o rumo da narrativa humana na terra, talvez um dos mais marcantes tenha sido o movimento nazista. Em nome de um pensamento dominante centrado no argumento de que pessoas “superiores” têm o direito de dominar outros indivíduos e que a sociedade deve expulsar elementos supostamente “inferiores”, dominou-se por muito tempo uma parte do mundo. A história registrou que Hitler desenvolveu as suas teorias políticas pela observação cuidadosa das políticas do Império Austro-Húngaro combinada com uma leitura equivocada da teoria da evolução humana de Charles Darwin, na tentativa de estabelecer relação cognitiva entre os fatos que observava, sua versão da história e leituras selecionadas de acordo com seu entendimento de mundo. Esse movimento cerebral aliado ao meio onde vivia e aos interesses políticos da época, levou ao desespero humano milhares de pessoas classificadas como “inferiores”, ou seja, um líder delirante mentalmente conseguiu conduzir uma massa humana igualmente delirante.
Talvez a história pudesse ter tomado outro rumo se a maioria da sociedade à época tivesse condições e vontade cognitiva de questionar seus pensamentos, confrontar suas ideias, perceber as certezas como relativas. Talvez!
Ao ler o exemplo aqui citado, você pode pensar que essa fase da história já ficou distante e que hoje, com a evolução da humanidade, isso não se repetiria mais. Será?
Não é raro encontrar pessoas comuns, próximas de nós, que mudam o planejamento de um dia, ou até de uma vida, por conta de um sonho “premonitório”; que explicam em detalhes o inexplicável com uma segurança cognitiva invejável; que ao ouvir uma notícia nova sobre a política ou sobre acontecimentos cotidianos traçam logo uma teoria conspiratória detalhada e se colocam como os únicos visionários da situação, os únicos a se salvarem.
Provavelmente o cérebro dessas pessoas está apenas relacionando informações à procura de algum sentido, com influência direta de suas memórias, de leituras superficiais, do entendimento individual de mundo, do inconsciente e talvez até, de algum desequilíbrio cognitivo. É preciso sempre cuidar para não cair nessas armadilhas.
A linha tênue entre o delírio e o conhecimento
Quando aprendemos algo novo e não temos a possibilidade de ampliação desse conhecimento, da confrontação de ideias e do contraditório, limitamos nosso saber sobre o assunto e sobre o mundo que o rodeia. Ao impedir esse exercício cognitivo tornamos robustas uma única via de aprendizagem, uma única conexão neural, que de tanto ser usada, se torna um procedimento automático, impedindo a ampliação da realidade e limitando a visão de mundo. Podemos então afirmar que essa pessoa adquiriu um viés cognitivo, uma via rápida de conhecimento de algo que na maioria das vezes não dá conta de entender o todo, fragmentando o conhecimento para que caiba dentro das possibilidades cerebrais do indivíduo.
A linha que divide o delírio cognitivo do conhecimento está centrada na dúvida do ser. Mesmo a ciência, com suas respostas exatas, trabalha com uma verdade provisória, que logo é colocada à prova por uma nova pesquisa, seguida de uma nova descoberta. O saber é relativo, está sempre em construção, o exercício do pensamento crítico e a consciência da própria ignorância é fundamental.
Nunca foi tão urgente questionar as certezas, as opiniões e os pré-conceitos. É imprescindível abandonar o senso comum e procurar a informação por meios seguros, confrontá-la com leituras reconhecidas cientificamente, desconfiar da informação rápida com apelo emocional ou sensacionalista, não ler apenas o título da notícia e concluir o restante. E por fim, ler mais e com mais qualidade. Uma sociedade que não lê bons textos é uma sociedade fadada a repetir os erros do passado e talvez, com maior crueldade, pois terá em mãos novas técnicas nas mais variadas áreas e a tecnologia da informação ao seu favor.
[1] PONCE, B.J. O humano, lugar do sagrado. São Paulo: Olho d’Água, 2002.
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Roberta Bocchi
Atualmente é pesquisadora e estudiosa da área de Neurociência aplicada à Educação pela Faculdade de Ciências Medicas da Santa Casa de São Paulo. Trabalha como Supervisora de Ensino efetiva da Rede de Educação Básica do Estado de São Paulo, onde também desenvolve pesquisas na área de Financiamento Público Educacional, Gestão Escolar e Currículo.
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