Vamos à Disney?
Prezado leitor, prezada leitora, o texto de hoje se apresenta em novo formato, pois tomo a liberdade de dividir com você uma experiência pessoal, inusitada e até o momento, impensada.
Sou uma mulher de 58 anos de idade que trabalhou a vida toda no mundo acadêmico. Professora, pesquisadora, escritora e supervisora de ensino foram e ainda são atividades que me fazem feliz e realizada. Também sempre gostei de viajar, dentro de meu país, o Brasil, pela América Latina ou pela Europa, à procura de lazer, conhecimento e contato real com a história que sempre estudei pelos livros.
Eis que um dia, durante um café da tarde, meu marido, prestes a completar 60 anos de idade, me fala:
– Sabe, eu tenho um sonho para nós e agora que vou completar 60 anos de idade queria realizá-lo!
Respondi de imediato que deveríamos sim realizá-lo, afinal são 60 anos de idade. Foi então que resolvi perguntar qual sonho seria e recebi como resposta:
– Quero conhecer o Mickey, quero ir em família para o Walt Disney World em Orlando, Flórida!
Pensei logo que era alguma brincadeira, mas logo vi que era sério.
Fiquei parada um tempo até perceber que era uma realidade. Pairava no ar uma possibilidade de viajar para a Disneylândia, pela primeira vez, aos 58 anos de idade.
Nos dias seguintes fiquei atordoada, me sentindo a pior das pessoas, pois eu não queria ir para a Disney, tomei conhecimento da existência do Mickey quando já era adulta, não tinha muito sentido para mim, nasci e fui criada na periferia da cidade de São Paulo e lá ninguém falava em Disneylândia, muito menos em Mickey, SOCORRO!
[1] Dra. em Educação – Políticas Públicas – pela PUC/SP; Especialista em Neurociência aplicada a Educação pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP; Supervisora de Ensino do Estado de SP; Professora Universitária, Pesquisadora, Comentarista e Palestrante. Acesse: www.robertabocchi.com.br Insta: @robertabocchioficial https://youtube.com/@robertabocchi?si=kfKpmh4sYuqX77Pd
Disneylândia para mim parecia sinônimo de superficialidade humana, um mundo de faz de conta caríssimo, onde a felicidade é obrigatória e a ascensão social garantida, bastando postar nas redes sociais uma foto no local. Talvez eu estivesse sendo preconceituosa, de certa forma infantil, afinal, era um aniversário importante e não colaborar seria egoísmo puro.
Resolvi falar, durante outro momento de café em família, sobre a situação atual geopolítica dos Estados Unidos, preparei uma argumentação sobre o novo governo ou “desgoverno” americano, mas não teve jeito, meu marido até conversou sobre o assunto, mas não mudou de ideia, queria ver o Mickey.
Lembrei-me do querido escritor brasileiro Ariano Suassuna[1], que em uma das suas aulas espetáculo”[2] relatou que em certa ocasião, foi convidado para jantar na casa de uma família rica e durante o jantar, houve o seguinte diálogo:
- Dona da casa: Você naturalmente já foi à Disney, não é?
- Suassuna: Já foi onde?
- Dona da casa: Á Disney!
- Suassuna: (Aí foi que descobri que era a Disneylândia, que já tem tanta intimidade que chama-se à Disney) Nunca fui não!
- Dona da casa: Foi aos Estados Unidos e não foi à Disney?
- Suassuna: Eu nunca fui aos Estados Unidos, eu nunca sai do Brasil não.
Crédito da Imagem: Commons
[1] Intelectual, escritor, filósofo, dramaturgo, professor, romancista, artista plástico, ensaísta, poeta, político e advogado brasileiro.
[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bFZulQoS63I – Acesso em 14/04/2025.
Após o diálogo, Suassuna relata que a Dona da casa saiu com uma decepção estampada no rosto e que nesse momento ele percebeu que ela dividia a humanidade em duas categorias, a que já foi à Disney e a que não foi à Disney e ele, por não ter ido, era uma espécie de categoria inferior.
Sinceramente, até este momento, eu me orgulhava em pertencer aos que nunca tinham ido à Disney. Saudades de Ariano Suassuna!
Entre a cara de espanto que fiz e o dia da viagem passaram-se 3 meses e quando percebi, estávamos eu, meu filho de 23 anos e meu marido de 60 anos indo para a Disneylândia. Meu marido feliz, meu filho tranquilo e eu, a única estranha da família.
Mas a possibilidade de conhecer além da Disneylândia e ainda escrever sobre a experiencia me revelou uma luz no final do túnel. Decidi ser a melhor das observadoras, aproveitar a viagem e depois deixar registrado por escrito a aventura.
Primeiro impacto
Os últimos relatos de brasileiros entrando nos Estados Unidos não são muito convidativos quando o assunto é passar pela imigração. Passamos muito bem, talvez por entrar pela Flórida, em família, tenha facilitado o “diálogo” entre as partes. As perguntas foram diretas, simples e rápidas, em menos de 30 minutos estávamos fora do aeroporto. Fiquei surpresa com a limpeza do aeroporto, organização, sinalização e alta mobilidade.
Nos hospedamos em uma casa típica da região, em um dos muitos condomínios existentes. Sempre que viajamos nos hospedamos em regiões fora do circuito turístico, na intenção de entender um pouco melhor a dinâmica diária da população local.
O primeiro impacto mental foi perceber o quanto a cultura brasileira está americanizada. Encontrei hipermercados parecidos com os brasileiros, hamburguerias de mesmo nome, cafeterias com o mesmo título, outlets, roupas de marcas familiares e ritmos musicais comuns aos ouvidos brasileiros, sem falar nos shoppings. Como a região abriga muitos imigrantes e turistas brasileiros, encontrar americanos para “gastar” o inglês era algo raro. Me sentia no Brasil.
Observando o número elevado de imigrantes, percebi que a economia local depende deles, por trabalharem diretamente na construção civil, comércio e no setor de serviços. Sem dúvida são peças importantíssimas para a engrenagem econômica local.
A construção das casas me chamou a atenção, basicamente em madeira, com paredes em drywall e revestimentos vinílicos, me fez pensar no exercício de desapego necessário, pois são materiais de desgaste rápido e de certa forma, fáceis de serem carregados por tempestades, que geralmente ocorrem na época dos furacões na região. Tudo que um dia está em pé e traz conforto, pode amanhã não existir mais. De certa forma, acredito que essa possibilidade contribui para a cultura do descarte, do consumo rápido e do desprendimento.
Casa de madeira, com paredes em drywall e revestimento vinílico – Flórida
Transporte público na região, esquece. Americano realmente gosta de carro, de carrão, tanque cheio de gasolina para rodar em estradas largas, bem sinalizadas e bem pavimentadas. Se está ou não prejudicando a ar que respira, parece não interessar a ninguém por ali.
A comida típica é um caso à parte. Talvez a cultura do descarte e desapego também esteja presente na alimentação do povo americano, pois a quantidade de gordura saturada e açúcar consumidos, indicam um certo nível de apocalipse a caminho, como se o mundo fosse acabar amanhã e tudo bem.
Seguindo em frente
Após visitar alguns dos parques da Disney, ver o Mickey e gritar muitooooo nas diversas montanhas russas, deixamos a região com destino à Daytona Beach e depois Nova Yorque. Registro que os parques realmente são muito bonitos, organizados, limpos e perigosamente alienantes.
Aproveito para anotar um fenômeno que aqui chamarei de “reação mental atordoada”. Enquanto estava visitando os parques tirei várias fotos, e algumas delas, foram parar nas minhas redes sociais. As reações foram imediatas, alguns pararam de me seguir por eu estar na Disney, como se de repente eu tivesse me tornado outra pessoa. Será que nosso querido Suassuna explicaria isso?
Passar a fazer parte da parcela populacional que já foi à Disney não me fez mudar de caráter, posição política, social ou modificou meu modo de viver. Eu apenas sai de férias e fui ao parque, no caso, o parque da Disney. Agora era eu, a vítima do preconceito, que antes, de alguma maneira, assombrava meus pensamentos.
Realmente temos disposição a rotular as pessoas, separá-las por bolhas e nos trancar nas nossas próprias bolhas. Fenômeno este alienante, que limita pensamentos, diminui a capacidade de novas conexões mentais, bloqueia novas aprendizagens e compromete a amplitude cognitiva humana.
Portas abertas para o mundo
Quanto mais nos distanciamos da região de Orlando, mais nos deparamos com a cultura americana de fato. Nas praias da região, os carrões continuam presentes, agora representados por Jeeps ou Caminhonetes sem as portas da frente, que são arrancadas por opção dos usuários, para acomodar melhor seus pés do lado de fora do carro e facilitar a locomoção. Sair e entrar do carro parece ficar mais fácil e novamente a cultura do desapego se faz presente, afinal, porta para quê?
Os carros em Daytona Beach podem trafegar pelas praias e estacionar durante a estadia na própria praia. Barracas são montadas a partir do carro e o dia é aproveitado com churrasco e demais guloseimas. Confesso que senti um certo estranhamento no trânsito da cidade ao trafegar ao lado de carros sem porta com pessoas de pernas para fora.
Seguindo para Nova Yorque a situação muda um pouco. O aeroporto conta com um sistema de segurança mais reforçado, revistas mais detalhadas e olhares menos amigáveis. Há uma certa inquietação no ar e ali sim, “gastar” o inglês passa a ser fundamental, questão de sobrevivência.
Nova Yorque se descortina com cara e cheiro de centro financeiro, meca do Fast Food e Fast Life, trânsito comparável com as grandes metrópoles e carros menores que os vistos antes, com portas, e vidros fechados. Muitas buzinas, semáforos, pedestres e enormes edifícios espelhados compõem um cenário intrigante. Pessoas de várias nacionalidades e vestimentas personalizadas contam com transporte público diversificado. Há liberdade na forma de ser e estar, mas para sustentá-la, é preciso Money.
Memorial dedicado aos ataques de 11 de setembro de 2001- Nova Yorque
A região onde ficavam as Torres Gêmeas do World Trade Center, totalmente reformulada, incluindo um memorial e um museu dedicado aos ataques de 11 de setembro de 2001, é parada obrigatória. Parada de pensamento, reflexão e observação, momento de respirar a história e começar a entender a cultura americana, passado e presente. Há ainda na região enormes prédios que tentam alcançar o céu na ânsia de serem os maiores da terra, mas no fundo agora sabem, que são vulneráveis, não são mais os donos do mundo.
Talvez por essa razão um certo sentimento de transitoriedade esteja presente em Nova Yorque e a diferencie do restante do país.
Por fim, hoje, se o querido Ariano Suassuna estivesse vivo, contaria a ale que visitar a Disneylândia e conhecer um pouco a cultura americana, não nos faz diferentes enquanto pessoas inseridas em determinados grupos sociais, pode ser divertido, curioso e de certa forma, enriquecedor, basta manter o olhar estrangeiro, sempre. A formação humana tem em sua base os fatores genéticos e o meio onde se vive. É o meio que molda a cultura de cada local e de alguma forma, determina comportamentos e escolhas. Por isso, somos diferentes e iguais ao mesmo tempo, diferentes nas escolhas e iguais enquanto humanos.