Considerando a onda de conservadorismo extremo e negacionismo exacerbado presente no Brasil e em alguns países ao redor do mundo, este artigo pretende provocar uma reflexão sobre a relação entre o funcionamento cerebral humano e o conceito de Política Pública expresso nos estudos de Azanha (2004):

Pode-se dizer que um “problema nacional”, como problema governamental, só existe a partir de uma percepção coletiva. Nesses termos, não seria suficiente para afirmar a existência de um problema nacional apenas a consciência crítica de alguns homens em face de uma realidade. É claro que essa observação não deve ser compreendida no sentido ingênuo de que a consciência cria a realidade social, mas apenas significando que, sem as pressões sociais que decorrem de uma percepção coletiva, a simples existência de determinados fatos pode não ser uma questão de governo, isto é, um problema nacional. Somente quando essa consciência se generaliza e se difunde amplamente na sociedade é que se pode falar de um problema em termos nacionais e de governo.  (AZANHA, 2004, p. 102) 

Diante da afirmação de Azanha (2004) será destacado para o estudo aqui proposto momentos pontuais, o primeiro deles, é a questão da “percepção coletiva”.

Tomando como base os estudos desenvolvidos pela neurociência, entende-se como percepção a capacidade neural e individual do cérebro perceber os diversos estímulos conscientes e inconscientes presentes no mundo. Nem sempre nossa percepção é capaz de captar todos os estímulos externos pertinentes a um determinado fenômeno, acabamos por captar os que se mostram mais relevantes individualmente e isso nos atribui uma percepção falha da realidade.  Cada indivíduo tem a sua percepção do fenômeno, mesmo que uma multidão veja o mesmo acontecimento ele será registrado pelo cérebro de cada um de acordo com suas memórias, vivências anteriores e histórico de vida. Cada um tem um conectoma neural único, fruto da sua percepção de mundo também única.

Isto posto, entende-se que percepção da realidade é um fenômeno cerebral individual e que para se tornar algo de maior amplitude, como o apontado por Azanha (2004) como “coletivo”, ele precisaria ser aprendido com o tempo, estimulado pelo meio onde o indivíduo vive. Logo, para que um problema passe a ser percebido como “nacional” e não apenas “governamental” a esfera do poder envolvido deverá ter uma determinada capacidade cerebral aprendida ao longo da vida.  Caso contrário, esse gestor público será capaz apenas de perceber a realidade de acordo com seu viés ideológico dominante no momento, combinado com seus interesses individuais.

Um cérebro capaz de aprender

A aprendizagem das questões que envolvem a percepção coletiva e sua influência na vida social, está relacionada a um fenômeno específico cerebral, intitulado de funções executivas cerebrais, que se desenvolve no córtex pré-frontal. Esse termo tem sua origem nos estudos desenvolvidos pela Neuropsicologia, e “caracteriza-se por um conjunto de processos cognitivos que envolvem o controle consciente do pensamento, do comportamento e da afetividade, como a memória operacional, o controle atencional, o controle inibitório e a tomada de decisões” (Stelzer, Cervigni, & Martino, 2010).

O cérebro humano é organizado em regiões e funções, que são formadas durante a gestação, mas o córtex pré-frontal continua seu desenvolvimento até em média os vinte e cinco anos de idade. Essa região depende de estimulação externa para se fortalecer e é acionada quando precisamos dar respostas mais elaboradas a situações diárias que não podem ser respondidas automaticamente. É nessa região, entre outras competências, que a capacidade de percepção coletiva encontra espaço para se desenvolver.

Nesse momento do texto fica claro que há necessidade de aprendizagem ao longo da vida para que as pressões sociais sejam percebidas enquanto percepções coletivas e a educação formal é um dos principais momentos para que ocorra esse processo cognitivo. A escolha de currículos escolares que priorizem a amplitude de conexões neurais, o estímulo ao pleno desenvolvimento das funções executivas cerebrais e a adoção de uma Política Pública que realmente privilegie a Educação como um dos principais pilares de uma sociedade, parece ser o único caminho.

Educação enquanto processo social e não como serviço

Para que a afirmação de Azanha (2004) tenha eco, a educação deverá formar sujeitos, capacitando-os a participar criticamente como agentes na construção da sociedade e isso está bem distante de medir saberes, na tentativa de compará-los com processos educacionais de outras culturas em um ensaio insano de reprodução em série, que parece ter como objetivo principal sustentar programas políticos e possíveis reeleições.

No caso brasileiro, há uma intenção latente do Estado[2] em alinhar a educação pública a tendências internacionais, acatando a pressões econômicas e políticas e adotando, na maioria das vezes, currículos prescritos, implantados como soluções possíveis diante do discurso dominante de má formação dos professores, como se essa prescrição curricular fosse a garantia de uma educação de sucesso. Abandona-se com isso a necessária discussão sobre a formação dos professores e o processo cognitivo enquanto desenvolvimento cerebral fortemente influenciado pelo meio.

Os Educadores, personagens fundamentais no processo educacional, nem sempre são ouvidos para a edição desses currículos, quase sempre isso é realizado por Governos ou grandes Instituições Educacionais, que pensam o currículo como um território de poder, lançando mão de uma ideia de sociedade adequada aos que arquitetam o currículo e não para os que o consomem.

A Educação de um povo revela o tipo de sociedade que se pretende para o futuro. É um tema que deve ser considerado enquanto “problema em termos nacionais” e estudado através da ciência, independente da vertente ideológica dominante no momento.

Em um mundo onde a aprendizagem não se amplia, onde as conexões neurais se tornam robustas em uma única via, há a possibilidade de todos começarem a pensar de forma idêntica, como uma massa cega e conduzida por uma única visão de mundo, que ignora o diferente, banindo-o da sociedade, rotulando-o e excluindo-o do convívio social.

A presença da dúvida e do contraditório é saldável para o bom desenvolvimento cerebral. É no contato com o diferente, com o problema e com a reflexão ampla sobre ele que ampliamos nossas conexões neurais, que adquirimos novos conhecimentos e nos aproximamos com mais discernimento e inteligência da condição humana.

Referências

AZANHA, J.M.P. Planos e políticas de educação no Brasil: Alguns pontos para reflexão. In: Estrutura e funcionamento da educação básica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

STELZER, F., CERVIGNI, M. A., & MARTINO, P. (2010). Bases neurales del desarrollo de las funciones ejecutivas durante la infancia y adolescencia. Una revisión. Revista Chilena de Neuropsicología, 5(54), 176-184.

[2]   Entendido aqui como uma entidade com poder soberano para governar um povo dentro de uma área territorial delimitada.